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TROVA

Francisco Cândido Xavier


Auta de Souza

Amor! Remomera a luz
Que do Cristo se descerra...
Um berço, um barco, uma cruz
E o bem redimindo a Terra...

ANÁLISE DA TROVA
Irmão Saulo

Auta de Sousa, a poetisa de Horto, foi considerada por Jackson de Figueiredo como “a mais alta expressão do nosso misticismo, pelo menos do sentimento cristão, puramente cristão, na poesia brasileira”. Atualmente, Alceu Amoroso Lima [Tristão de Ataíde] confirma essa opinião e acrescenta: “Auta de Sousa viveu em estado de graça e os seus versos o revelam de modo evidente.” Olavo Bilac, que prefaciou a primeira edição de Horto, acentuou: “A nota mais encantadora do livro é a do misticismo.”

A poetisa mística, nascida em Macaíba, no Rio Grande do Norte, em 12 de setembro de 1876, descobriu na vida espiritual a dimensão maior da caridade, que é o amor em ação. E tanto cantou a caridade em seus poemas enviados do além, que no meio espírita fez surgir a Campanha Auta de Souza, dedicada à coleta de alimentos para os desamparados, que se faz de casa em casa em várias cidades, como um chamado constante a todas as criaturas para a prática da fraternidade.

Na quadra acima, que Chico Xavier nos enviou, temos uma síntese da sua poesia do aquém e do além. A simplicidade dos versos, a espontaneidade da inspiração, que levaram Bilac a escrever: ”aqui a alma vibra em liberdade, sem a preocupação dos efeitos da forma”, bem como “o estado de graça” e o “sentimento de absoluta pureza” notados por Amoroso Lima, brilham com luz mais intensa nessa minúscula centelha poética.

A razão de publicarmos essa quadra solitária está no seu poder de síntese conceptual e histórica. Esses quatro versos valem por um poema, por um sermão, por um ensaio ou por uma aula, revelando da maneira mais simples todo o imenso poder de síntese da poesia e, particularmente, da trova. No plano conceptual temos a visão global, gestáltica, num insight, do impacto do cristianismo na Terra. No plano histórico temos a visão do desenvolvimento temporal da mensagem cristã, toda ela sugerida em apenas três tempos, como no frêmito de uma fuga musical.

Bastaria essa trova para atestar a autoridade da psicografia de Francisco Cândido Xavier. Porque Auta de Souza projetou-se nela de corpo e alma, através da forma e da essência, dando o nó que mostra a unidade da sua poesia terrena e da sua poesia celeste. Lembrando a celebre definição do teatro por Victor Hugo, podemos dizer que essa quadra é o point d’optique de toda a poética de Auta Souza. É o mesmo que ocorreu com Augusto dos Anjos no soneto “Número infinito”, publicado em Parnaso de além-túmulo [primeiro livro psicografado por Chico Xavier], e com Castro Alves no poema "Brasil", recebido no final do segundo Pinga-Fogo do Canal 4.

A palavra amor cai como um estampido no começo da trova, deflagrando os dois primeiros versos na síntese da iluminação cristã do mundo. No terceiro verso, passada a explosão que veio do céu, temos o aparecimento de um berço na Terra, simplesmente um berço – síntese da encarnação. A seguir, um barco balança sobre as águas e simboliza toda a pregação do Evangelho. Depois, em apenas duas palavras, “uma cruz”, temos o fim trágico e ao mesmo tempo glorioso do ministério divino. E no quarto verso a expressão do cristianismo, já não mais histórico, mas transcendente na sua imanência, simbolizado no Bem platônico – a ideia suprema que se encarna na redenção.

Note-se bem a dinâmica dessa microforma poética em que as palavras funcionam, cada uma delas, e todas em seu conjunto, com elementos assindéticos de significação conceptual e histórica. O poeta atinge a sua plena realização num momento como esse, que é o aboutissement de toda a sua vivência poética. Auta de Souza não pôde atingir esse momento supremo na sua trajetória terrena, mas o fato de atingi-lo no após-morte oferece-nos a prova cabal da continuidade da existência. Não se pode atribuir ao médium esse resultado superior – na forma evidente de uma síntese dialética – de toda uma vivência lírica específica, a vivência testemunhada pela obra poética do Horto.

Assim, toda a poesia do Horto se torna propedêutica, uma preparação existencial dessa minieclosão poética do gênio de Auta de Souza, que se dá no intermúndio mediúnico, à semelhança das façanhas místicas dos deuses gregos e romanos. A ligação interexistencial se evidencia no amadurecimento poético do após-morte.

Nunca a trova provou de maneira mais positiva a sua equivalência, na poesia ocidental, ao haicai japonês. E o poder da palavra, na sua concentração significativa, na sua carga conceptual, jamais se revelou tão absoluto como nesse isolamento que o contexto da trova lhe permitiu ou até mesmo lhe impôs.

Aos críticos da poesia mediúnica tem sempre faltado a boa vontade e isenção de ânimo para encará-la objetivamente. Essa falta de objetividade leva-os a menosprezar de antemão o fato poético paranormal. Se encarassem a obra em si, como objeto de exame, libertando-se do preconceito e da precipitação no julgamento, como Descartes já ensinava, não cometeriam tantas injustiças para com os médiuns autênticos e os autênticos autores espirituais. Falta-lhes, por estranho que pareça, a noção de que a obra literária é produto do espírito, e não do corpo.

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